Equipes de saúde levam dignidade a populações de rua
Equipes de saúde levam dignidade a populações de rua
Muito além de atendimento médico, esses pacientes especiais ganham uma conversa amiga e até apoio para voltar para casa
BRASÍLIA (14/12/17) – Eles não têm emprego. Não têm teto. Muitas vezes, não têm, sequer, um documento de identificação. Mas sentem dor, adoecem, precisam de medicamentos, de apoio. Para atender a essa parte marginalizada da sociedade – pessoas em situação rua -, a Secretaria de Saúde conta com o Consultório na Rua, projeto do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde - o DF foi um dos pioneiros a implementá-lo, ainda em 2012.
Atualmente, três equipes fazem atendimento a essas público no Distrito Federal, conforme preconiza o Ministério da Saúde. O censo aponta a existência de aproximadamente três mil pessoas vivendo em situação de rua no DF. As equipes de Consultório na Rua têm 5,9 mil pacientes cadastrados. Isso porque, devido à itinerância característica dessa população, alguns indivíduos possuem cadastro em mais de uma equipe.
Todas essas equipes, que atuam nas regiões do Plano Piloto, Taguatinga e Ceilândia, são parte da Estratégia Saúde da Família e estão vinculadas a uma Unidade Básica de Saúde. "Eles atuam na atenção integral à saúde das pessoas em situação de rua por meio da atenção direta e resolutiva e também por meio de articulação, sensibilização e instrumentalização da rede para as demandas e vulnerabilidades associadas à vivência de rua", explica Carolina Vaz, referência técnica do Consultório na Rua.
Conforme destaca o psicólogo da equipe de Ceilândia, Marcus Lima, as abordagens sempre respeitam o interesse de cada indivíduo e têm por objetivo "ofertar às pessoas em situação de rua atendimentos em saúde dentro da carteira de serviços oferecida pelo SUS."
Na região, os atendimentos da demanda espontânea ocorrem de segunda a sexta-feira na base do Consultório na Rua de Ceilândia, na UBS 5 (QNM 16 Ceilândia Norte), e em campo junto às pessoas em situação de rua (busca ativa) nos locais em que se encontram nos períodos em que é disponibilizado transporte para a equipe.
VÍNCULO – A dinâmica de atendimento a esse público é completamente diferente. Enquanto pessoas fora dessa realidade buscam atendimento médico quando têm alguma queixa de saúde, essa população vulnerável não se sente à vontade para fazer o mesmo e por diversas razões.
"Eles têm medo de serem hostilizados, por razões como a falta do banho, roupas inadequadas, efeito de álcool e drogas. Há essa barreira para o acesso a saúde pública, que é justamente o que nós buscamos quebrar. E fazemos isso de algumas formas, mas a principal delas é criar o vínculo com eles, mostrando que eles são importantes", destaca o médico de família e membro do Consultório na Rua de Taguatinga, Artur Maldonado.
E esse vínculo é perceptível já no primeiro atendimento feito pela equipe numa tarde de terça-feira chuvosa. Ao chegar em uma quadra comercial de Taguatinga, o médico Artur foi logo abordado pela moradora Cícera Souza, já atendida pela equipe dele outras vezes. Reclamava, chorando, de uma dor na garganta e feridas nas língua. "Tenho medo de ser um câncer", dizia.
"Calma, dona Cícera, não há de ser nada grave", disse logo Artur, já examinando a senhora. "Vá até a unidade básica de saúde para um exame mais detalhado e para retirar medicação", recomendou, fazendo o mesmo a outras três pessoas que ali estavam e também descreviam suas queixas. Apenas dois deles compareceram. O que, para a equipe, já é um grande ganho.
E a abordagem é sempre assim, com calma, numa conversa com linguagem bem próxima a deles, tudo de modo a não assustar. "Precisamos que ele se sinta acolhido", frisa Maldonado.
Uma das maiores dificuldades da equipe, porém, é a adesão ao tratamento. Muitas das pessoas atendidas são diagnosticadas com diabetes, hipertensão, algumas até com tuberculose e hanseníase, doenças que necessitam de tratamento por longos períodos. "Muitos não voltam para buscar a medicação. Já chegamos a ficar levando o remédio para paciente de rua, mês a mês, mas eles andam muito e nem sempre os encontramos", diz o médico.
APOIO - Mas quando o vínculo é criado, muito se consegue. Um exemplo, inclusive premiado em mostra nacional de atenção básica em 2014, ocoreu em Taguatinga. Um morador de rua com problemas mentais foi tão bem cuidado pela equipe local que em dois anos, além do tratamento recebido, ele conseguiu voltar para sua cidade, no Rio Grande do Sul, onde reencontrou a irmã.
"Em conversa com ele, descobri o nome de um parente que trabalhava, possivelmente, em uma fábrica de cosméticos no Sul. Entrei em contato mas foi sem sucesso. Porém, conseguimos contactar a rádio mais famosa da região, que nos ligou e passamos todos os dados do paciente. Assim, uma irmã apareceu", conta a psicóloga do grupo, Heleura Cristina.
Segundo o médico Artur Maldonado, o papel dos profissionais do Consultório na Rua vai mesmo além de tratar o problema de saúde. "Não tratamos somente a dor física. Buscamos aliviar o sofrimento humano, resgatar a cidadania", destaca.
OFICINA – O procedimento de atendimento é bem semelhante nas três equipes de Consultório na Rua: abordagem na rua, com saídas diárias e encaminhamento para a unidade Básica de Saúde de referência. Todos os pacientes são cadastrados e, quando possível – já que eles não têm residência física-, é feito o acompanhamento.
Todas as equipes têm pelo menos um médico de família e comunidade, um enfermeiro, um técnico de enfermagem, um assistente social, um psicólogo e um agente de saúde.
No Consultório na Rua do Plano Piloto, porém, há um projeto desenvolvido que ainda não foi levado para outras regiões: a Oficina de Futebol. Ela, inclusive, foi um dos 193 projetos selecionados entre 558 inscritos durante a I Mostra de Experiências Inovadoras no SUS.
"O projeto surgiu da demanda dos próprios usuários, inicialmente como uma proposta despretensiosa. Enquanto pessoa envolvida com esportes e práticas integrativas, vi no jogo a oportunidade de trabalhar com eles uma série de questões de prevenção e de promoção de saúde", conta a psicóloga membro da equipe, Fernanda Carpovicz Botelho.
Ela conta que trabalha a respiração e exercícios de ioga, para levar mais tranquilidade aos pacientes. "A partir do jogo, surgem inúmeras interações com eles. Nos intervalos e quando acaba o jogo, vêm as questões de saúde. Alguns dizem que vão parar de beber para melhorar o desempenho no jogo, outros que vão para com as drogas. Ou seja, eles começam a entender que o que fazem no dia a dia interfere na saúde deles", ressalta.
A proposta tem ganhado tanto peso que eles já estudam a possibilidade de participarem, em 2018, de um campeonato local de futebol. "O próprio pessoal da mostra fez a doação de camisetas que usaremos como uniformes. E agora a gente precisa de doações de tênis, pois a maioria joga descalço por falta de condições de adquirir um calçado", destaca Fernanda.
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